domingo, 12 de maio de 2013

Bibliografia Dispersa (3): A Lenda da Moura Fátima Oureana



No mês de Maria, nas vésperas do 13 de Maio, decidi publicar a Lenda da moura Fátima Oureana.
Alguns podem perguntar-se, mas afinal o que é que esta lenda tem a ver com Almada, pois bem, segundo nos diz Frei Francisco de Santa Maria, escritor português do século XVIII, na sua obra Anno historico (1), a moura Fátima, que na lenda se apaixona pelo guerreiro português Gonçalo Hermiges (ver imagem), convertendo-se ao cristianismo e mudando o nome para Oureana (lenda que está na origem dos nomes das cidades de Fátima e Ourém), era almadense!
                             Guerreiro Gonçalo Hermiges e a moura Fátima Oureana (2)

A lenda difundida em Ourém, divulgada por Frei Bernardo de Brito na "Crónica da Ordem de Cister" (Livro VI, Cap. I), diz no entanto que Fátima era ou filha do alcaide ou do rei mouro de Alcácer do Sal (2), no entanto Fr. Francisco dá uma outra versão que a seguir  transcrevemos:

“24 de Junho – XI. Gonçalo Hermiges, illustre Cavalleiro Portuguez, do tempo do nosso primeiro Rey, foi naõ menos entendido, que illustre, e naõ menos esforçado, que entendido. Fazia os versos com mais elegância, e cultura, do que se podia esperar da rudeza daquella idade, e por elles era na Corte estimado, e aplaudido com ventagens aos da sua esfera. Em valor igualava na campanha aos mais destemidos. Tinha contra os Mouros huma taõ ardente aversaõ, que em os vendo, mas que fossem, ou Embaxadores, ou cativos, lhe pulava o coração no peito de tal forte, que se lhe divisavaõ no rosto os sinaes da ira. O seu mais frequente exercício era andar em continuas invazoens sobre as terras dos bárbaros, fazendo-lhe todo o género de hostilidades, sem perdoar a cousa viva, e forão tantos os mortos aos golpes da sua espada, que lhe chamavaõ vulgarmente o Traga Mouros, Entre outros casos, lhe succedera o que agora diremos. Achou-se antes da madrugada deste dia, no anno de 1170, junto de Almada, Villa fronteira a Lisboa, sabia que ao romper da manhãa haviaõ de sahir os Mouros da mesma Villa a lograr a frescura, e amenidade dos campos, e a celebrar, por seu modo, aquelle Santo (S. João Baptista), a quem rendem veneraçoens, e tributaõ aplausos atè os mesmos infiéis. No ponto em que sahiraõ, forão improvisamente assaltados dos Portuguezes, e metidos em grande numero, huns à espada, outros ao grilhão, recobrados, porem, os que restavaõ, vendo a pouca gente, que os investia, se fizerão em hum corpo em nossa offensa, e se travou hum duríssimo combate. Pelejavaõ os Mouros, vendo, e ouvindo as lágrimas, e gemidos das suas famílias, e posto que estas vozes da natureza, e do amor, lhe infundiaõ alentos, como estavão cortados do primeiro temor, cederão em fim à impressão furiosa das nossas armas. Recolherão-se os Portuguezes aos bateis carregados de riquíssimos despojos, dos quaes o generoso, enamorado Herrniges, não quiz outro para si, mais que huma fermosíssima Moura chamada Fátima, que elle cativara por sua mão, e de quem logo ficara cativo. Tratou-a com honestas attençoens, muito differentes das que costuma a licença militar. Conseguio com estremado gosto seu, que se fizesse Christaã, e recebeo o bautismo, e nelle mudou o nome de Fátima, em Oriana. Logo lhe deu a mão de esposo, e começarão ambos a ser exemplo de amor conjugal a todo o Reyno; e Hermiges esquecido jà de tudo o que não era a sua Oriana, sò a ella dedicava as elegâncias do seu engenho, e os affectos do seu coração; mas arrebatando-lha a morte dentro em poucos dias, esteve em pontos de perder o juízo, até que caindo em si, e entrando no verdadeiro conhecimento das vaidades desta vida, tomou o hábito de Cister no Mosteiro de Alcobaça, empregando todos os seus bens, que erão muitos, na erecção do Mosteiro de Tamaraes junto á Villa de Ourém, onde falleceo santamente. Já naõ apparece este Convento, porque se aplicarão as suas rendas ao Collegio de Saõ Bernardo de Coimbra».

              A Moura Fátima Oureana, imagem de Ana Oliveira (3)

Este texto, lendário, tem a curiosidade, não só de situar a origem de Fátima em Almada, como também de relatar a devoção ao São João Baptista, santo patrono da cidade de Almada, na população muçulmana que permaneceu em Almada, mesmo depois da sua conquista por D. Afonso Henriques, em 1147. É curioso que o ano que o autor atribuiu à lenda ser o mesmo da carta de foral aos mouros de Almada, 1170.
Apesar de estarmos a falar apenas de tradições, como diz a sabedoria popular - “as lendas têm sempre um fundo de verdade”, e talvez seja esta a origem do Culto do São João da Ramalha, como admitiu o investigador António Neves Policarpo (4).

RUI M. MENDES
Caparica, 12 de Maio de 2013

Notas:
(1) Frei Francisco de SANTA MARIA – Anno historico, diario portuguez, noticia abreviada de pessoas grandes e cousas notaveis de Portugal, Vol. 2, Lisboa : Na Officina de Domingos Gonçalves, 1744, pp. 269-270
(4) Vide António Neves POLICARPO – “Uma confraria muçulmana-sufi na origem do S. João da Ramalha? Mito ou realidade?”, in Anais de Almada, N.º 2, 1999, pp. 75-100.




quarta-feira, 3 de abril de 2013

Conferência de Alexandre Flores, "Fernão Mendes Pinto e a sua Peregrinação na Outra Banda (1563-1583)" (2-4-2013)


Foi no passado dia 2 de Abril de 2013, na Academia de Marinha, em Lisboa, perante um auditório repleto de membros da mesma e outros convidados, incluindo uma representação da Presidência da Câmara Municipal de Almada, que o professor Alexandre Magno Flores, historiador e investigador local, arquivista responsável pelo Arquivo Histórico Municipal de Almada, apresentou uma conferência com o título “Fernão Mendes Pinto e a sua Peregrinação na Outra Banda (1563-1583)”, dedicada ao autor da Peregrinação, escritor, aventureiro e insigne figura da História e Cultura portuguesas do século XVI e inserida no âmbito dos 450 anos da sua ida para o concelho de Almada.


                   Fernão Mendes Pinto  (*)         Excerto do frontispício holandês da Peregrinação 


  1.ª Ed. Peregrinação
Alexandre Flores destacou nesta conferência, sobretudo, os últimos 20 anos da vida do “andarilho do Oriente”, nos quais FMP viveu no concelho de Almada, na zona do Pragal, aqui constituindo família e convivendo com o meio e sociedade locais, quer como Juiz da vila, da Câmara, e Mamposteiro da Gafaria de S. Lázaro, de Cacilhas, e da Albergaria de Almada. Referiu-se, em particular, a importantes figuras históricas nacionais, contemporâneas de FMP em Almada, tais como D. João de Portugal, D. João de Abranches, Francisco de Sousa Tavares, João Lobo, Diogo de Paiva de Andrade e os seus irmãos Frei Tomé de Jesus e Francisco de Andrade, poeta e Cronista mor do Reino, responsável pela organização da primeira edição da obra maior de FMP – Peregrinação, editada em 1614, e que no século XVII foi traduzida e editada em mais de seis idiomas diferentes, o que constituiu, à época, talvez o primeiro grande sucesso literário da língua portuguesa.
 
Diogo de Paiva Andrade         Frei Tomé de Jesus     

João de Barros
Foi na sua quinta de Palença, na outra banda, que FMP escreveu a sua obra, a qual ofereceu aos seus filhos. Aqui recebeu ilustres visitantes, tais como João de Barros, Bernardo Neri (embaixador de Cosme I de Medici, Grão Duque da Toscânia) e Giovanni Pietro Maffei (historiador da Companhia de Jesus), interessados nas notícias que FMP trouxe do Oriente, nomeadamente do Japão, onde esteve quatro vezes. Foi também em Almada que FMP terá contado ao próprio D. Filipe II de Espanha as suas memórias de viagem.


Vista aérea do Vale de Palença (freg.ªs Caparica e Pragal), com as Quintas de Montalvão (1), S. Lourenço (2) e Palença de Cima (3). De acordo com Alexandre Flores, numa delas terá vivido Fernão Mendes Pinto.

Nesta conferência, além de diversos aspetos, já conhecidos, da biografia do escritor, a qual tem sido investigada, quer pelo próprio Alexandre Flores desde a década de 1970, quer por vários autores como Jordão de Freitas, Romeu Correia, Pereira de Sousa, Pais Brandão, Rebecca Katz, Fernando-António de Almeida, e muitos outros; foram ainda apresentados elementos inéditos, recentemente descobertos por um investigador local na documentação do Convento de S. Paulo de Almada, o mais interessante dos quais é sem dúvida a identificação das filhas de Fernão Mendes Pinto – D. Madalena de Brito e D. Joana de Brito, aqui falecidas e sepultadas no referido convento, a quem doaram a sua parte da Quinta de Monte Alvão, propriedade ainda hoje existente e situada no Vale de Palença, entre as freguesias de Caparica e Pragal, a qual poderá ter sido a casa e quinta onde viveu Fernão Mendes Pinto, local da escrita da sua Peregrinação.


Extracto do Tombo de S. Paulo de Almada (1762) (**) onde são referidas as «filhas de Fernão Mendes Pinto», que em 1638 deixaram, em testamento, parte da sua Quinta de Monte Alvão, ao Convento de S. Paulo.

O texto da conferência será oportunamente divulgado ao público através da sua publicação nos Anais da Academia de Marinha


RUI M. MENDES
Monte de Caparica, 3 de Abril de 2013

Fotografia de Luis Bayó Veiga.
(*) Gravura de Fernão Mendes Pinto, publicada por Alexandre M. FLORES, Reinaldo Varela GOMES e R. H. PEREIRA DE SOUSA – Fernão Mendes Pinto: subsídios para a sua bio-bibliografia. Almada: Câmara Municipal de Almada, 1983.
(**) Imagem do Arquivo Nacional da Torre do Tombo.



Algumas das Edições originais da Peregrinação no século XVII:

  
Primeiras edições da Peregrinação em português (1614) e castelhano (1620)

   
Primeiras edições da Peregrinação em francês (1628) e holandês (1650)

   
Primeiras edições da Peregrinação em inglês (1653) e alemão (1671)
PORTUGUÊS – Peregrinação em que dá conta de muitas e muito estranhas coujas que vio e ouvio no Reyno da China, no da Tartaria, no do Sornau, que vulgarmente se chama do Sião, no do Caliminhan, no do Pegù, no de Martavão, e em outros muitos Reynos e Senhorios das partes Orientaes de que nessas nossas do Occidente há muito pouca ou nenhuma notìcia.
Lisboa, ed. Pedro Crasbeeck, org. Francisco de Andrade, ded. D. Filipe II, 1614.
Lisboa, ed. António Crasbeeck de Mello, 1672.
CASTELHANO – Historia oriental de las peregrinaciones de Fernan Mendez Pinto
Madrid, ed. Tomas Iunti, trad. Francisco Herrera Maldonado, ded. Arcebispo de Toledo, 1620.
Madrid, ed. Diego Flamenco, 1627.
Valência, ed. Bernardo Nogues, 1645.
Madrid, ed. Melchor Sanchez, 1666.
FRANÇÊS – Les Voyages advantureux de Ferdinand Mendes Pinto
Paris, ed. Maturin Henault, trad. Bernardo Figueira, ded. Cardeal Richelieu, 1628.
Paris, ed. Arnauld Cotinet & Jean Roger, 1645.
HOLANDÊS – De wonderlyke reizen van Fernando Mendez Pinto
Amsterdam, trad. Jan Hendrik Glazemaker, 1650.
Amsterdam, ed. Jan Rieuwertsz en jan Hendriksz – Boekverkopers, 1653.
INGLÊS – The Voyages and Adventures, of Fernand Mendez Pinto
Londres, ed. J. Macok, trad. H(enry) C(ogan) Gent, ded. William Earl of Strafford, 1653, 1663.
Londres, ed. R. Bentley, 1692.
ALEMÃO – De Wunderliche und Merckwürdige Reisen Ferdinandi Mendez Pinto
Amsterdam, ed. Heinrich e Dietrich Boom, 1671.
Strasbourg, ed. ex Officina Poor et R Waechteer, 1674.

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Bibliografia Dispersa (2): Da Imagem de nosa Senhora do Castello da villa de Almada


(Em homenagem aos 40 anos do Centro de Arqueologia de Almada)

Fonte:
Frei Agostinho de SANTA MARIA, Santuário Mariano, Livro II, Título LXVI, Lisboa, Na Officina de António Pedrozo Galrão, 1707, pp. 437-442.
Publicado também em:


(Actual Imagem de Nossa Senhora da Assunção)

TITULO LXVI
Da Imagem de nosa Senhora do Castello da villa de Almada
NO anno em que ElRey Dom Affonso Henriquez tomou a Cidade de Lisboa aos Mouros, que foy no de 1147, tomou também as Villas de Palmella & Almada, com os mais lugares circumvisinhos a Lisboa. E já nesses tempos era Almada povoação de nome, & pelas utilidades, que della tiravaõ os Mouros, a defendiaõ: eraõ aquellas terras abundantes não só das cousas necessárias para a vida; mas de regalos; & já neste tempo tinha Castello & era cingida de fortes muros mas o valor del Rey D. Affonso tudo vencia, & com elle foraõ de todo lançados fóra os Mouros daquellas terras, & começáraõ a ser pacificamente possuidas dos Christãos. Alguns querem, que primeiro tomasse ElRey Almada, que Lisboa. O que dos nossos Escritores consta, he, que naquelle anno se tomàraõ todas assim o diz Fr. Antonio Brandão na Mon. Lus. p 3.l.10 cap 28.
A Matriz da Villa de Almada he dedicada à Rainha dos Anjos Maria Santíssima (como o são quasi todas as deste Reyno) debaixo do titulo do Castello, naõ só por que se festeja no dia de sua gloriosa Assumpção em que se canta o Evangelho: Intravit JESUS in quoddam Castellum; mas porque foy achada em os muros do Castello, a invocaçaõ também com este título. He esta Sagrada Imagem taõ pequenina que não excede a altura de hum palmo.
[p. 438]
A sua antiguidade he tão grande que excede a memória dos homēs, & não se sabe dizer em que tempo foy o seu aparecimento, & assim o que se refere delle por tradição he o que agora diremos.
Passando certo dia o Prior daquella Igreja (de quem não fìcou em memoria o como se chamava) por junto hum muro daquelle Castello, vio em hūa abertura, ou agulheiro do mesmo muro hum vulto tão divisar (sic.) o que fosse; mas levado da curiosidade, ou movido de soberano impulso, quiz ver o que aquillo era. E reconheceo ser hūa Imagem da Mãy de Deos, que ainda que pequenina na estatura, era muyto grande na soberana magestade que mostrava; porque nella se reconhece hum não sey què de divindade oculta. Ou pudèra corn o Esposo dos Cantares, que achára no aguilheiro daquella pedra, ou daquelle muro a divina Pomba Columba mea in for aminibus petrae. E tendo o Prior por favor do Ceo aquelle achado da Ave Santíssima, & merecia ser collocada em outro ninho muyto mais decente, a levou para a sua Igreja, & nella a colocou. Concorrendo a gente com a noticia, & fama do successo, se começàrão logo a manifestar os seus poderes, nas muytas, & grandes maravilhas, que obrava: que supposto (por curia, & negligência dos que então cuydavão daquela Igreja) senão authenticàraõ, a tradição afirma, que forão muytas, & ainda agora a experiencia publica muytas que obra em todos os que com viva fé a invocão.
He esta soberana Imagem da Senhora de excellente escultura & de madeyra incorruptível, como Cedro; foy estofada & encarnada & as roupas pefiladas das de ouro; mas como a sua antiguidade he muyto grande, já hoje se vê a pintura muyto amortecida. Porém os Priores daquella Igreja nunca quizerão consentir (& tiverão razão) que se lhe tocasse para que assim se conservasse fosse melhor a tradição de seu apparecimento
[p. 439]
Tem sobre o braço esquerdo ao Menino Deos que tambem mostra hua soberana magestade Ainda que as maravilhas & milagres que tem obrado esta Senhora são muytos não há sinaes nem memorias delles & dizem que a causa de as não haver foy não consentirem os Priores antiguos que na Igreja se puzessem payneis. Porèm todos os dias está Deos obrando por meyo daquella Santíssima Imagem & intercessão daquella Senhora toda misericordiosa de quē he retrato, milhares de prodígios & milagres assim no mar como na terra & principalmente em mulheres que tem partos difficulttosos por esta razão he a Madrinha geral de todos os meninos que nacem & a advogada de todo aquelle povo
Somente se vê naquella Igreja hum quadro que alli mandou por Dom Pedro Alvares da Cunha, Trinchante Mor que refere ser mercê que a Senhora fez a sua filha primogénita (de quem a Senhora he Madrinha) D. Lourença Francisca, livrando a de hūa gravíssima doença em que já se reportava por morta & a Senhora (que he a medicina do mundo como diz São Boaventura) Medicino Mundi, lhe deu milagrosa vida.
Outro grande & estupendo milagre nos refere o Prior que hoje he daquella Igreja o Licenciado Joseph Botelho de Lemos, que foy delle testemunha ocular. Refere que pelos annos de 1693 ou 94 estando-se concertando o tecto daquella Igreja (que he grande & de huma só nave & muyto antigua de abóbada de pedra na forma da Igreja do Convento de São Jeronymo de Belem) que he composto de lagēs de pedras miúdas, & por esta causa tão ariscado, que em se desunindo hūa se vem tudo abaixo; nesta occasião era tão evidente o perigo da passagem da Igreja para a Capella mòr, que só ao redor de hūa parede se passava; porque tudo o mais estava embaraçado [p. 440] com os andaimos, compostos de grandes mastros muyto fortes & sobre elles estava hum assoalhado taboas novas & grossas, em que se contavam seis dúzias, muyto bem leadas com cordas breadas & em cima deste outro andaymo que chegava ao tecto. Ainda assim a fé que todos tinhão na Senhora do Castello, os fazia tão ousados, que todos passavão sem algum temor, dizendo que na Casa daquella Senhora ninguem podia perigar.
Assim succedeo: porque durando a obra mais de hu mês & estando o tecto perigoso; & a gente sem nenhūa cautela, não succedeo cousa, que prejudicasse alguma pessoa; antes succedeo hum caso maravilhoso, que se não pode deixar de ter por hū evidentissimo milagre, & foy, que na ocasião em que se concertava o tecto da Igreja pegarão de hum dos payneis da abobada, que estava perigoso & as pedras delle mais desunidas, que serião trinta da grossura de quatro dedos & de largura de dous palmos em quadro. E julgando os Mestres que estava seguro por terem unido as referidas pedras com palmetas de pao, mandàrão a dous aprendizes desmanchar os andaymos, que tinhão de altura ao menos sessenta palmos; neste tempo hum dos moços ficou no andaymo de baixo, que era o mayor & outro foy ao de cima, & querendo com hum martello recolher hūa palmeta, que não estava bem metida, por estarē as pedras em vão, cahirão todas as daquelle paynel que erão as trinta referidas, com tal impeto & impulso, que quebràrão os mastros, as cordas, & as taboas, que tudo era muyto forte, & cahindo no pavimento da Igreja quebràraõ as campas das sepulturas, que erão grossíssimas & estavão assentadas em terra firme. E sendo a fábrica de que se compunhaõ os andaymos de diversos & muytos materiaes & as pedras na quantidade referida, & a altura da Igreja imensa, vierão entre todas estas cousas os moços ao chão, & ambos ficarão [p. 441] ilesos, sem que padecessem nem huma leve arranhadura. E só a hū delles se lhe rompeo hua abba da casaca, que era velha.
Este successo assim referido não podia succeder naturalmente; mas na opinião de todos os que virão, & souberão o modo como succedeo, o julgarão por hum singular & prodigioso milagre da Senhora do Castello; & assim o jura o mesmo Prior que nos fez esta relação.
Tem esta Igreja hua Capella mòr magestosa & nella se vê hum retábolo dourado & no meyo huma tribuna em que está collocada sobre hū trono outra Imagem grande; a quem também dão o título do Castello & da Assumpção. He de talha & estofada corn o Menino JESUS sobre braço esquerdo obrada na mesma forma da milagrosa imagem da Senhora pequenina & apparecida; & sem dúvida, alem de o affirmar a tradição se mandou fazer para que estivesse publica & exposta à devota veneraçao dos fiéis visto que a Imagem da Senhora milagrosa estava occulta à sua vista. Tambem he muy to magestosa & com ella se tem muyta devoção.
Tem a Senhora do Castello hūa nobre & antiquissima Irmandade que goza de hum grande thesouro de graças, & indulgencias que lhe concedèrão os Summos Pontifices. He Juiz della o filho do Conde de Assumar & o forão sempre fidalgos da primeyra nobreza. Festeja se quatro vezes no anno nas suas festas principaes; porèm na de sua Assumpção, he mayor a celebridade. Tem a Senhora rendas sufficientes em fóros & vinhas & he a Padroeira da Villa de Almada & seu termo, & como tal invocação todas os horas os moradores della.
A Imagem pequenina, por milagrosa & apparecida que póde bem ser fosse escondida pelos Christãos, antes que os Mouros entrassem naquella Villa [talvez na reconquista de Almançor de 1191] na qual resplandeceria em milagres & a Divina Providencia a guardou [p. 442] & defendeo manifestando a depois ao Prior daquella Igreja, para que fosse o presídio, o amparo, & a protecção della; merecia estar collocada em hum sacrário de ouro, adornado de diamantes & pedras; porèm há havido tão pouca attenção para se tratar toda aquella veneração, & respeyto que lhe he devido que não tem lugar naquella casa que he sua.
Esta Santa Imagem anda sempre pelas casas dos enfermos, & na ocasião em que se nos fez esta relação se achava em casa do Trinchante mòr Dom Pedro da Cunha [Quinta de São Lourenço, Palença de Baixo].
E quando vem, a poem aonde querem & muytas das vezes se vê na Sacristia, sem veneração algūa. Porque como ha naquella Igreja outra Imagem grande que está collocada em a tribuna da Capella mór como fica dito; serve somente a Imagem da Senhora antigua, & milagrosa de andar fazendo visitas pelas casas, consolando os enfermos, & affligidos; sem atenderem os Priores daquella Igreja, a que a poderáõ furtar; porque andando de mão em mão facilmente podia ser. E que desculpa podem dar os Priores a hum grande descuydo & desatenção?
E assim rogo a algū dos Priores daquella Igreja, se chegar a ler esta relação, remedee esta falta, (porque a Senhora do Castello não castigue) mandando collocar a sua Imagem em lugar aonde seja venerada como se vem as Imagēs da Senhora do Cabo, da Senhora da Merceana, da Senhora das Virtudes, da Senhora das Brotas, da Senhora dos Remédios de Lisboa, que todas estão em sacrarios com vidraças & com summa veneração. Não permitindo que andem mãos de quem não trate com a veneração, que se lhe deve; & que impida quanto puder o sahir fóra da sua Igreja; porque para a devoção dos doentes, & enfermos, bastarà que se lhes conceda, ou hum manto, ou huma coroa da mesma Senhora.


Autor e Licenças:
Frei Agostinho de Santa Maria, Ex Definidor Geral da Congregação dos Agostinhos Descalços deste Reyno, & Natural da Villa de Estremoz
Editado em Lisboa, na Officina de António Pedrozo Galrão, com todas as licenças necessárias, no ano de 1707.
Dedicatória a Nossa Senhora de Copacavana, escrita em Lisboa, Convento do Monte de Olivete, Fevereiro, 2. de 1704.
Censura do M.R. Padre Fr. Agostinho das Mercês, no Convento de Nossa Senhora das Mercês da Cidade de Évora, em 11 de Setembro de 1702.
Censura do M.R. Padre Fr. José dos Mártires, no Convento de Nossa Senhora das Mercês da Cidade de Évora, em Outubro, 21. de 1702.
Com a Licença de Fr. Manuel de S. José, Geral Vigário da Real Congregação dos Descalços de N. Padre S. Agostinho de Portugal. Real Convento de N. Senhora da Conceição do Monte de Olivete em 23 de Agosto de 1703.
Aprovado por Fr. Manuel de S. Joseph e S. Rosa, Censor do Santo Ofício. Lisboa, S. Francisco da Cidade, em 9 de Outubro de 1703.
Aprovado por Fr. António das Chagas, Censor do Santo Ofício. Lisboa no Convento da Santíssima Trindade, aos 29 de Outubro de 1703.
Licenças de Carneiro / Moniz / Hasse / Monteyro / Ribeiro. Lisboa, 30 de Outubro de 1703.
Licença de Fr. Pedro, Bispo de Bona. Lisboa, 1 de Dezembro de 1703.
Aprovado no Paço por Sebastião de Mattos. Congregação do Oratório de Lisboa em 13 de Junho de 1704.
Licenças de Oliveira / Vieyra / Lacerda / Carneiro. Lisboa, 28 de Junho de 1704.
Licença, visto estar conforme o original, de Carneiro / Hasse / Monteiro / Ribeiro / Rocha / Fr. Encarnação. Lisboa, 7 de Outubro de 1707.
Licença de Fr. Pedro, Bispo de Bona. Lisboa, 8 de Outubro de 1707.
Taxão este Livro em 9 tostões em papel. Duque / P. Oliveira / Costa / Andrade / Botelho. Lisboa, 12 de Outubro de 1707.



RUI M. MENDES
Caparica, 1 de Novembro de 2012

Notas históricas:
As imagens aqui descritas, quer a Nossa Senhora grande, quer a  pequena já existam no século XVI, quando a Igreja do Castelo foi visitada pela Ordem de S. Tiago, quer em 1527:
- No «altar-moor: o qual he de huma lagea sobre piares de pedra e tem tres degraaos de pedraria e em cima dele está huma imagem de Nosa Senhora de vulto de paao com ho minino Jesu no colo e hum retabolo pequeno de Santana de imaginava todo dourado e sam as paredes da dita capella mor de pedra e caal e o teito de cima he forrado de bordos muito bem obrados e amte o dicto altar moor esta huma alampada com sua bacia d'arame»; e
- No «corpo da dita igreja -silicet- o arco do cruzeiro he de pedrarya e na parede do cruzeiro da bamda do norte esta hum altar d'alvenaria com seu degrao de pedraria e em cima dele esta hum retabolo de matiz bom com a imagem de São Pedro no meo de cuja envocação he o dicto altar e as imagens de Sam Bemto e São Paulo e da Madalena e São Francisco e pelo pe do dito retabollo estão outra imagens de samtos e huma imagem pequena de Nosa Senhora de vulto de pao com o minino Jesu no colo»; e
Quer em 1534, período em que a Igreja do Castelo, parece, se andava refazendo, pois nesse ano de 1534 já nela se encontravam colocados um vitral novo na parede norte da Capela mor e um retábolo dourado e painel novo no Altar mor:
- «estão duas frestas abertas novamente na dita capella [mór] huma de pedrarias da banda do sul e outra d'allvenaria da parte do norte em a qual esta huma vidraça com ha immagem de Nossa Senhora [] e na do sul esta hum pano emcerado»;
- «está agora na dita capella hum retabollo dourado que he mayor que o alltar hum pallmo de cada parte e tem seu guarda po e guirllanda por cima todo d'ouro e d'ahi e no meyo delle esta huma immagem de Nossa Senhora de vullto [com] o menino no collo e da parte de evangelho a immagem de Nossa Senhora da Saudação pintada e da parte da epistolla outra immagem de Nossa Senhora d'Assunção o qual retabollo nos diseram que custara em branco quarenta mil reaes os quaes se pagaram a custa de Dom Jorge Pimentel comendador que foy desta comanda e a pintura custou outros quarenta mil reaes que pagou Fruitos de Goes por sua devação e esta no meyo do dito retabollo em cima do alltar feito hum sacrario muito bem obrado e rico e nom esta nelle o sacramento sendo mandado na visitação pasada que estivese ahy ao que provemos como se adiante achara»;
(PINTO, 2001, 202)

Segundo registará mais tarde Damião de Goes, alguns deste ornamentos foram encomendados directamente por ele na Flandres, a pedido do seu irmão Frutos de Goes, residente em Almada:
- «Item: — mãdei stando em frandes pêra ha Egreiga de nossa sõra do castello dalmada hua vidraça grande em q está pintada ha anuncjação de nossa snra».
- «loguo quomo vim de frandes no anno de 1545 (sic), dei a meu irmão fructos de goes que deos haia hu retabolo grade cõ portas co ha imagem de nossa snra pintada co seu bento filho no collo, ha qual creo q elle deu a egreija de nossa snra do castello de almada onde tem sua sepultura».
(HENRY, 1998, 155)

Com o terramoto de 1 de Novembro de 1755, caiu a igreja do Castelo conforme documentam as Memórias e Registos Paroquiais da Paróquia do Castelo:
«Em esta villa de Almada caio de todo a Iggrª do Convento de S. Paulo de Religiozos Dominicos, a Iggr.ª de N.ª Snr.ª de Assumpção cita no Castello, ficando nestas duas igrejas mortas perto de cem pessoas, e no Castello foi tão grande a impressão, q as frotes torres delle, e a nobre caza de Residência, q nelle tinhão os Priores, ficou tudo cahido e arruinado; na villa, excepto duas ou três moradas de cazas, todas as mais ficarão, ou cahidas, ou gravemente arruinadas, infelicidade que padecerão quazi todos os edifícios nobres q havião assim ? em a freg.ª de Caparica, como as mais do destricto desta v.ª. As pessoas que fallecerão assim na Iggr.ª do Castello, como em S. Paulo pertencentes a esta minha freg.ª são as seguintes: Em a Iggr.ª do Castello: / O Pe. António Frr.ª Peres, Thezour.º e Icónomo da Iggr.ª / O Pe. Joze Henriques Madr.ª, Icónimo da mesma / Jozepha M.ª, m.er de António Franc.º carpintrº / Madalena M.ª, m.er de George Pinto, trabalhador / A May do Thezourº da freg.ª de S. Thiago, M.ª da S.ª ? Dias / E do mesmo duas filhas menores / Manoel Joze da Costa, cazado com D. Izabel / João Duarte, homem solteiro, fazendeiro / Ignácia M.ª, m.er de João Roiz o Bulla ?» (Almada, Castelo, Óbitos, Livro 5, f. 53-55v)
«A Matriz desta Vila com a invocação de Nossa Senhora da Assunção situava-se em o Castelo, obra antiga, nobre, de abóbada sem nave alguma, e toda de pedraria, a qual de todo se arruinou e demoliu com as casas dos Priores em o Terramoto do primeiro de Novembro de 1755, e no mesmo estado se conserva até o presente; e na mesma forma as torres e muralhas do Castelo que padeceram igual ruína» (ANTT, Memórias Paroquiais, volume 3, n.º 5, fls. 65-66 – apud FLORES, 2009, 38)

Em 1758 foi a Imagem de Nossa Senhora da Assunção, que se mandou reformar em Lisboa, trasladada para a Igreja do Espírito Santo, que então servia de Paroquial do Castelo, conforme nos relata um dos livros da sua Irmandade:
«Sendo arruinada pelo Terramoto do primeiro de Novembro do ano de 1755 a Freguezia de Nossa Senhora da Assunpção do Castelo foy a Imagem da Mesma Senhora a unica que chegou inteyramente a destruir-se achando-se a sua veneranda cabeça debaycho das minas quando se desentulhou a Capela Mor da dita Igreja e freguesia cuidarão logo os Irmãos da Meza da dita Senhora da Assumpção em mandar fazer imagem nova que com essa se fêz servindo para ella a referida cabeça, e no dia 13 do presente mês de Agosto de 1758 foy exposta depois de benzida pontifical e solemnemente pelo Excellentissimo e Reverendíssimo Arcebispo de Lacedemonia na freguesia de Nossa Senhora dos Anjos da cidade de Lisboa, donde sendo conduzida em procissão, no mesmo dia 13 de tarde pela sua irmandade junta com as mais que assistiram a este acto, foy colocada nesta Igreja do Espírito Santo aonde se acha de presente a Freguesia da mesma Irmandade.
Foy a referida procissão solemnisissima e vistoza tanto na cidade de Lixboa onde foy innumeravel o concurso de gente que a acompanhou, mas também na passagem do mar por serem muitas as embarcações, que ornadas com suas bandeyras e galhardetes no mesmo mar acompozeram [fl. 3v.] e assim mesmo sucedeu nesta vila de Almada por que desembarcando-se a Senhora no Porto de Cacilhas, cujas prayas estavão cobertas de gente, foy trazida com indiziveis allegrias pelas ruas, que daquelle porto vem emdireitarão para esta dita Iggreja, as quais se achavam ornadas com he costume na procissão do Corpo de Deus.
No dia 14 se cantou missa solemne com musica e foy o orador do dito dia Meretissimo Reverendo Padre Frei Ignacio de Jesus [...] religioso da província da Arrábida, de tarde se cantaram vésperas, e a noite matinas, depois das quaes houve fogo, e algum delle de vistas. No dia 15 houve também Missa com a mesma solemnidade e foy o orador o Meretissimo Reverendo Padre Manoel de Jesus, presbitero de habito de São Pedro, e de tarde se cantaram vésperas, como no dia antecedente. Por esquecimento deixou de se dizer assima no lugar a que pertenciam e que à chegada da procissão a esta dita Igreja se cantou solemnemente o Te Deum Laudamus, e que as pessoas desta vila em três noites successivas ornaram com luminarias as ruas della. Em todos os dias referidos assistirão [fl. 4] os Religiosos de São Domingos desta vila, a Nobreza della, e grande concurso de povo. E para que non fique em esquecimento o referido, e a todo o tempo conste fiz neste livro a presente declaração, e eu Padre Francisco Leitão de Figueiredo Escrivão da Mesa da Irmandade da mesma Senhora o escrevi e assignei».
AHMA, Irmandade de Nossa Senhora da Assunção do Castelo, Constituição e regulamentação, Livro de Eleições e Termos de Posse, Lv. 1 (1758-1808), fls. 3-4, n.º de registo: 3036. || […] Fl.31
(Transcrito de Almada na História, N.º 13-14, 2007)

Os serviços paroquiais, imagens e Irmandade de Nossa Senhora da Assunção foram em 1776 para a Igreja de S. Paulo, que havia sido comprada por 6:400$000 réis pela Ordem de S. Tiago aos Dominicanos, passando a servir de Paróquia do Castelo até 1835, ano em que foi extinta a freguesia (Portaria do Cardeal Patriarca de Lisboa de 28 de Novembro).

A Imagem de Nossa Senhora da Assunção permaneceu na Igreja de S. Paulo durante o século XIX e XX, mesmo depois de em 1934 o P. António Falcão a ter comprado, em hasta pública, com o antigo convento, oferecidos depois ao Cardeal Cerejeira para aí edificar um seminário diocesano. A Igreja foi integrada no Seminário, sendo aberta ao público para a missa dominical, sendo que a imagem de Nossa Senhora da Assunção, que primitivamente se encontrava no altar mor, passou a ocupar o altar lateral da de Nossa Senhora do Rosário, aqui ficando até ser transferida para a nova Igreja de Almada, dedicada a Nossa Senhora da Assunção, no ano de 1969.

Fontes:
FLORES, Alexandre M., Vila e Termo de Almada nas Memórias Paroquiais de 1758. Separata da Revista Anais de Almada, n.º 5-6, Almada, [Ed. Autor], 2009.
HENRY, William John Charles, Ineditos Goesianos, Lisboa, V. da Silva & Ca., 1898, p. 155

ANTT, Ministério do Reino, Colecção de plantas, mapas e outros documentos iconográficos, n.º 21 – pub. FERNANDES, Mário, "Documentos relativos à história de Almada : A Igreja de N.ª Sr.ª da Assumpção", in Al-madan, II Série, n.º 2 (pp. 111-115), Julho de 1993; vide também: MENDES, Rui M., «Património Religioso de Almada e Seixal: Ensaio sobre a sua história no século XVIII». Publicado na Revista Anais de Almada, 11-12 (2008-2009), Almada, Câmara Municipal de Almada, 2010, pp. 67-138, pub.
http://www.academia.edu/640421/Patrimonio_Religioso_de_Almada_e_Seixal_Ensaio_sobre_a_sua_historia_no_seculo_XVIII
PINTO, Rui Miguel Costa, «As Visitações da Ordem de Santiago em Almada no séc. XVII», in Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, Vol. 119, Nº. 1-12, 2001, pp. 171-224.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

O Hospital dos Marinheiros Ingleses no Concelho de Almada



(Porto da Banática, Caparica, local onde funcionou em 1745 um Hospital de Marinheiros Ingleses).


Nota Prévia:
Este texto já foi parcialmente publicado do meu post «Da Fonte da Pipa à Arialva, passando peloOlho de Boi (2/3)».

Introdução
Estabeleceu-se na Margem do Sul do Tejo, no século XVIII, um Hospital de Marinheiros Ingleses, que teve a importante missão de dar assistência à frota da Marinha Inglesa, sobretudo a que fazia aqui escala a caminho ou vindo das Caraíbas, da Costa Africana e do Índico.
Era local de convalescência preferencial dos marinheiros britânicos, uma vez que o clima de Portugal era muito mais propício à recuperação da sua saúde do que a sua Britânia natal.
As fontes que consultámos registam que esteve em diversos locais ribeirinhos do concelho de Almada, entre eles a uma Quinta no Porto da Banática. Neste artigo vamos falar desses diversos locais.

Fonte da Pipa
Registamos a criação deste Hospital num Decreto de D. Pedro II datado de 22 de Maio de 1705, o qual determina que «os soldados e marinheiros inglezes das armadas d'esta nação que vêem a este porto e forem doentes, se curem nas casas do forte, que se edificaram no sitio da Fonte da Pipa, que fica da banda d'além do Tejo, para lhes servirem de hospital». (1 )



(Forte da Fonte da Pipa, Almada, onde foi estabelecido em 1705 um Hospital de Marinheiros Ingleses).

Este Hospital de Marinheiros Ingleses estabelecido no Forte da Fonte da Pipa desde 1705 é referido em outros documentos com ainda existente nesta margem em 1711 e 1713, como regressado a Lisboa em 1734 e de novo estabelecido na margem do sul em 1745. (2)

Parece claro que este Hospital Inglez novamente estabelecido em 1745 não seria no Forte da Fonte da Pipa, pois aqui residia em 1752, Manuel Antunes Simões e sua mulher, que nesse ano tomaram 400$000 réis de empréstimo aos Frades de São Paulo para a fábrica e aumento das suas fazendas. (3)


Porto da Banática
Em 1745 regista-se nos Livros de Óbitos da Caparica (4) um assento de 8 de Dezembro que refere o falecimento de André Angêlo, veneziano, «no Porto da Banática e casas do Capitão António Dias Pinheiro que de presente se acha o Hospital dos Ingleses».

(Assento de 1745 sobre o Hospital dos Ingleses no Porto da Banática)

Estas casas correspondiam às da quinta do Porto da Banática, a qual fazia parte do Casal da Banática, um dos casais da Capela de Maria Pires Roubã, de que era administrador no século XVIII Monsenhor João Guedes Pereira, e tinham sido aforadas a António Dias Pinheiro em 13 de Setembro de 1704, e arrematadas em 1748 por Francisco Carneiro de Araújo e Melo (5). 
Esta arrematação em 1748 pode indicar que entretanto o Hospital já fora transferido para outro local. 

Porto da Arrábida
De facto em 1758 encontramos um registo num dos livros de óbitos da Caparica com a notícia do falecimento de Francisco Rodrigues, morador nas Fontes Santas, no «Hospital da Nação Britânica cito no Porto da Arrábida, Freg.ª do Castello da Villa de Almada» (6) e cujos últimos sacramentos aí lhe foram administrados pelo Pe. Nicolau Tolentino Seabra (que sabemos residia em 1762 no lugar do Pragal).

    (Assento de 1758 sobre o Hospital da Nação Britânica no Porto da Arrábida)

Uma descrição de José Baretti feita na sua visita a Almada em 1760 diz que o mesmo estava à beira rio para baixo de Almada para a banda do mar e quando visita a Arialva diz que voltou rio acima:
«desci a collina, voltei ao bote, e mandei aproar ao hospital dos inglezes, que fica do mesmo lado do rio, para baixo, para a banda do mar; mas não vi lá cousa nenhuma que parecesse extraordinária, excepto um medico já velho do hospital, um urso, que, tendo recebido aos setenta annos uma rapariga de dezoito, tornou-se, apesar de inglez, tão bestialmente ciumento, que se poz a olhar muito para mim de soslaio, quando viu que me dirigia para o jardim do hospital, porque sua mulher alli estava n'aquelle momento colhendo figos e uvas para o jantar (…) do hospital inglez, donde voltei, rio acima, para casa de um irlandez (Arialva) que negoceia em vinhos por grosso». (7)
Esta descrição parece fazer coincidir este Hospital no Porto da Arrábida.


(Porto da Arrábida, Pragal, local onde existia em 1758 um Hospital de Marinheiros Ingleses)


Porto de Cacilhas
Já em 1793 numa pintura de Noel com o título de «A view taken from Lisbon, the English Hospital and the convento of Almada» parece indiciar que este Hospital estaria ou próximo do Convento de S. Paulo de Almada ou possivelmente em Cacilhas no local do Forte de Santa Luzia (mais tarde Guarda Fiscal).

(Noel, «A view taken from Lisbon, the English Hospital and the convento of Almada», 1793)

A confirmação da localização em Cacilhas vamos encontrá-la de novo num assento de óbito, desta vez da freguesia de S. Tiago de Almada, em 21 de Março de 1796, de Matheus Borch, solteiro de nação irlandesa, assistente no «Ospital de Cacilhas». (8)
 
(Assento de 1796 sobre o Hospital Inglês em Cacilhas)

Em 1798 Heinrich Friedrick Link refere a existência, «logo abaixo de Almada, no sopé da colina, de um grande hospital inglês para a marinhagem, em especial a das frotas e que ficava junto a um armazém grande de vinhos». Um dos doentes que foi tratado naquele hospital foi o Almirante Francis Beaufort, o inventor da ainda em uso escala de ventos, que tendo sido ferido em 28 de outubro de 1800, aquando da captura do Navio Espanhol S. José, veio completar a cura em Almada onde, segundo refere, dava grandes passeios pelos arredores. Beaufort só veio a largar de Lisboa , findo o tratamento, em 18 de agosto de 1801. (9).



(Almirante Francis Beaufort, 1774 + 1857, que passou pelo Hospital Inglês de Cacilhas entre 1800 e 1801)


Em 15 de janeiro de 1802 a Gazeta de Lisboa publicava o seguinte anúncio : «terça feira 19 do corrente mês, pelas 10 horas da manhã, na casa da praça do comércio se hão de vender em leilão vários restos de medicamentos, instrumentos de cirurgia, camas, lençóis, cobertores e outras pertenças do hospital da marinha britânica, sito no lugar de Cacilhas, aonde se poderão examinar os ditos artigos nos três dias antecedentes à venda».

Terá sido este o fim do Hospital da Marinha Britânica que esteve no concelho de Almada, nas margens do Tejo, quase 100 anos entre 1705 e 1802. 

Resta referir que este Hospital de marinheiros ingleses era um hospital militar pois o hospital dos mercadores ingleses só vei ao ser edificado em Lisboa em 1793 pelo famoso comerciante inglês Gerard DeVisme.


RUI M. MENDES
Caparica, 21 de Setembro de 2012

Notas:
(1) AHML, Liv.º X de reg.º de cons. e dec. do sr. rei D. Pedro II. fs. 78, in Eduardo Freire de Oliveira, Elementos para a história do Município de Lisboa, Tomo X, pág. 276 – cit. Alexandre M. Flores, Chafarizes de Almada, nota n.º 30.
(2) A.H. de Norris – The British Hospital in Lisbon, Lisbon : The British Historical Society of Portugal, 1973; et Com. E. Gomes – «Vigia da História», Revista da Armada, (Publicação Oficial da Marinha) no seu nº 459 Ano XLI de Janeiro 2012.
(3) ADS-CNA, Liv. 102, fól. 124v.
(4) ADS-PRQ, Almada, Caparica, Óbitos, Liv. 9, fóls. 112v-113.
(5) Carlos Gomes de Amorim Loureiro, Estaleiros Navais Portugueses. Subsídios para a história da construção naval de ferro e aço em Portugal, Vol. II: H. Parry & Son, Lisboa, 1965, pág. 44.
(6) ADS-PRQ, Almada, Caparica, Óbitos, Liv. 10, fól. 132.
(7) José Baretti et Alberto Telles (trad. ital.), Portugal em 1760. Cartas Familiares (XV a XXXVIII) de José Baretti, Lisboa : Typ. Barata & Sanches, 1896, págs. 35-40 – Cit. Abrantes Raposo et Victor Aparício, Os Palmeiros e os Gafos de Cacilhas, Cacilhas : J.F., pág. 57.
(8) ADS-PRQ, Almada, S. Tiago, Óbitos, Liv. 6, fól. 43.
(9) Com. E. Gomes, idem, ib.