domingo, 12 de maio de 2013

Bibliografia Dispersa (3): A Lenda da Moura Fátima Oureana



No mês de Maria, nas vésperas do 13 de Maio, decidi publicar a Lenda da moura Fátima Oureana.
Alguns podem perguntar-se, mas afinal o que é que esta lenda tem a ver com Almada, pois bem, segundo nos diz Frei Francisco de Santa Maria, escritor português do século XVIII, na sua obra Anno historico (1), a moura Fátima, que na lenda se apaixona pelo guerreiro português Gonçalo Hermiges (ver imagem), convertendo-se ao cristianismo e mudando o nome para Oureana (lenda que está na origem dos nomes das cidades de Fátima e Ourém), era almadense!
                             Guerreiro Gonçalo Hermiges e a moura Fátima Oureana (2)

A lenda difundida em Ourém, divulgada por Frei Bernardo de Brito na "Crónica da Ordem de Cister" (Livro VI, Cap. I), diz no entanto que Fátima era ou filha do alcaide ou do rei mouro de Alcácer do Sal (2), no entanto Fr. Francisco dá uma outra versão que a seguir  transcrevemos:

“24 de Junho – XI. Gonçalo Hermiges, illustre Cavalleiro Portuguez, do tempo do nosso primeiro Rey, foi naõ menos entendido, que illustre, e naõ menos esforçado, que entendido. Fazia os versos com mais elegância, e cultura, do que se podia esperar da rudeza daquella idade, e por elles era na Corte estimado, e aplaudido com ventagens aos da sua esfera. Em valor igualava na campanha aos mais destemidos. Tinha contra os Mouros huma taõ ardente aversaõ, que em os vendo, mas que fossem, ou Embaxadores, ou cativos, lhe pulava o coração no peito de tal forte, que se lhe divisavaõ no rosto os sinaes da ira. O seu mais frequente exercício era andar em continuas invazoens sobre as terras dos bárbaros, fazendo-lhe todo o género de hostilidades, sem perdoar a cousa viva, e forão tantos os mortos aos golpes da sua espada, que lhe chamavaõ vulgarmente o Traga Mouros, Entre outros casos, lhe succedera o que agora diremos. Achou-se antes da madrugada deste dia, no anno de 1170, junto de Almada, Villa fronteira a Lisboa, sabia que ao romper da manhãa haviaõ de sahir os Mouros da mesma Villa a lograr a frescura, e amenidade dos campos, e a celebrar, por seu modo, aquelle Santo (S. João Baptista), a quem rendem veneraçoens, e tributaõ aplausos atè os mesmos infiéis. No ponto em que sahiraõ, forão improvisamente assaltados dos Portuguezes, e metidos em grande numero, huns à espada, outros ao grilhão, recobrados, porem, os que restavaõ, vendo a pouca gente, que os investia, se fizerão em hum corpo em nossa offensa, e se travou hum duríssimo combate. Pelejavaõ os Mouros, vendo, e ouvindo as lágrimas, e gemidos das suas famílias, e posto que estas vozes da natureza, e do amor, lhe infundiaõ alentos, como estavão cortados do primeiro temor, cederão em fim à impressão furiosa das nossas armas. Recolherão-se os Portuguezes aos bateis carregados de riquíssimos despojos, dos quaes o generoso, enamorado Herrniges, não quiz outro para si, mais que huma fermosíssima Moura chamada Fátima, que elle cativara por sua mão, e de quem logo ficara cativo. Tratou-a com honestas attençoens, muito differentes das que costuma a licença militar. Conseguio com estremado gosto seu, que se fizesse Christaã, e recebeo o bautismo, e nelle mudou o nome de Fátima, em Oriana. Logo lhe deu a mão de esposo, e começarão ambos a ser exemplo de amor conjugal a todo o Reyno; e Hermiges esquecido jà de tudo o que não era a sua Oriana, sò a ella dedicava as elegâncias do seu engenho, e os affectos do seu coração; mas arrebatando-lha a morte dentro em poucos dias, esteve em pontos de perder o juízo, até que caindo em si, e entrando no verdadeiro conhecimento das vaidades desta vida, tomou o hábito de Cister no Mosteiro de Alcobaça, empregando todos os seus bens, que erão muitos, na erecção do Mosteiro de Tamaraes junto á Villa de Ourém, onde falleceo santamente. Já naõ apparece este Convento, porque se aplicarão as suas rendas ao Collegio de Saõ Bernardo de Coimbra».

              A Moura Fátima Oureana, imagem de Ana Oliveira (3)

Este texto, lendário, tem a curiosidade, não só de situar a origem de Fátima em Almada, como também de relatar a devoção ao São João Baptista, santo patrono da cidade de Almada, na população muçulmana que permaneceu em Almada, mesmo depois da sua conquista por D. Afonso Henriques, em 1147. É curioso que o ano que o autor atribuiu à lenda ser o mesmo da carta de foral aos mouros de Almada, 1170.
Apesar de estarmos a falar apenas de tradições, como diz a sabedoria popular - “as lendas têm sempre um fundo de verdade”, e talvez seja esta a origem do Culto do São João da Ramalha, como admitiu o investigador António Neves Policarpo (4).

RUI M. MENDES
Caparica, 12 de Maio de 2013

Notas:
(1) Frei Francisco de SANTA MARIA – Anno historico, diario portuguez, noticia abreviada de pessoas grandes e cousas notaveis de Portugal, Vol. 2, Lisboa : Na Officina de Domingos Gonçalves, 1744, pp. 269-270
(4) Vide António Neves POLICARPO – “Uma confraria muçulmana-sufi na origem do S. João da Ramalha? Mito ou realidade?”, in Anais de Almada, N.º 2, 1999, pp. 75-100.




2 comentários:

  1. Olá Rui.

    esta lenda faz mais sentido que a de João Tiago e da Moura, de Almada, passada em Junho de 1147, que nos quer indicar que Almada foi conquistada antes de Lisboa...

    abraço

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    1. Pois ... foi por acaso que dei com esta fonte ... pareceu-me interessante dado o calendário eclesiástico e a velha questão da origem das festas de S. João ... contudo a história da conquista de Almada antes de Lisboa, ou seja nas vésperas do 24 de Junho de 1147, apesar de inverosímil, foi difundida em muita bibliografia antiga ....

      Abraço,

      Rui

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